“Não gosto de recordar, me deixa extremamente chateada. Quando parece que estou seguindo em frente, algo me para. É como se fosse uma pedra ...
“Não gosto de recordar, me deixa extremamente chateada. Quando parece que estou seguindo em frente, algo me para. É como se fosse uma pedra no meu caminho.” O desabafo é de uma adolescente de 16 anos, durante audiência de julgamento do acusado de tê-la estuprado dos 6 aos 8 anos de idade – o próprio pai.
Os traumas da infância criaram feridas difíceis de fechar. Por duas vezes ela perdeu o ano escolar. A luta para ter uma vida normal e sem memórias tão doloridas se tornou obsessão. “É um assunto muito delicado para mim. Faço sessões com psicólogo e psiquiatra ao longo de todos esses anos para tirar isso da minha mente. Ninguém no mundo deveria passar pelo o que passei na minha infância”, lamenta Ana*.
Por uma manobra legal da defesa do suspeito, o processo chegou a ser anulado e o calvário teve de ser reiniciado, o que a obriga a reviver o trauma repetidas vezes. O Estado de Minas acompanhou o caso durante audiência na Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente, em Belo Horizonte.
Os abusos sexuais começaram depois da separação dos pais, contou a jovem. “Lembro que ele encostava nas minhas partes íntimas durante os banhos, que doía muito. Eu não entendia a gravidade da situação e ficava chateada, porque ele chegou a falar que mataria minha mãe e minha família se eu contasse. Minha mãe é a pessoa que eu mais amo na vida, como viveria sem ela?”, descreveu a adolescente.
Na escola, a garota passou a dar sinais de que algo estava errado. Professores notaram que ela arranhava o rosto com as mãos. Embora tenha começado tratamento psicológico na época, os abusos só foram descobertos depois, quando Ana tomou coragem e contou para a ex-madrasta que, junto de Patrícia, a mãe da menina, denunciou o crime.
Patrícia relatou que a filha tinha medo de ficar sozinha e voltava da casa do pai com a pele assada na região da virilha. Ela a levava ao dermatologista, mas a suspeita de abuso era uma realidade longínqua. “Eu não imaginava. Embora não tenha sido bom marido, até então, era um ótimo pai”, diz. “Depois de conseguir que ela me relatasse o que acontecia, ela falou: ‘Agora que te contei, você vai morrer?’. Eu respondi: ‘Vou viver para te proteger, para que sua verdade seja dita, vou lutar para que isso ocorra’”, relatou a mãe, aos prantos.
SEM PARAR
A audiência de Ana foi uma das centenas ocorridas na vara especializada nesta pandemia. Entre março de 2020 e março deste ano, houve 269, e 337 sentenças foram proferidas. Os julgamentos foram adaptados às exigências da pandemia para evitar aglomerações. Vítimas, testemunhas e acusados comparecem presencialmente ao endereço do Centro de BH, mas as sessões ocorrem pelo computador, em videoconferência – magistrados, promotores e advogados podem participar remotamente, de casa ou escritório. Também se encontram nas dependências psicólogos que acolhem as vítimas e assistentes dos juízes. Eles ocupam diferentes salas equipadas com cadeira, mesa e computador.
Na sala de depoimento especial, a vítima se encontra com psicólogo, única pessoa com quem conversa, capaz de abordar de forma sutil a violência sofrida. Todo o diálogo é transmitido aos representantes do Judiciário, Ministério Público e advogados. No ambiente, há duas poltronas confortáveis, um microfone, duas câmeras discretas e alguns objetos coloridos que tornam o lugar um pouco mais lúdico. Concluída a conversa, o profissional vai à sala de audiência e confere com o juiz se restam dúvidas sobre o caso. Se alguma questão for levantada, retorna à sala e lança a pergunta de forma adaptada.
São ouvidas ainda testemunhas de defesa e de acusação e o réu. No fim, é feito um resumo do processo. O Ministério Público pode pedir a condenação do acusado e o juiz estabelece prazo de cinco a 10 dias para alegações finais da defesa, seguido de sentença.
* Os nomes citados nesta reportagem são fictícios, pois o processo corre em segredo de Justiça